domingo, 4 de outubro de 2015

Excertos

Minutos para o anoitecer.
            Agigantava-se a maré de nevoeiro, que anunciava uma descida inesperada da temperatura.
            A porta vibrou, mal toquei à campainha. Ponderei há quanto tempo estaria parado ali atrás, de pé. À minha espera.
            A luz morta dos elevadores nunca me tinha parecido atraente. Sempre que lá ia, era a primeira coisa que me avisava que, talvez, devesse voltar para trás.
            A primeira noite em que visitara Charlie seria também a última em que punha os pés num elevador. O barulho das roldanas, o cheiro a mofo, a luz a piscar no teto.
O espelho baço, onde vi refletida a minha face. Rímel. Maquilhagem preta nos olhos, algo carregada.
            O que vi... Esse foi o aviso número dois.
Escadas.
            Ele já não me esperava por detrás da porta, como fizera no primeiro mês. Não precisei de me anunciar.
- Pizza?
            Há muitas formas de fazer perguntas. Ele costumava tentar alimentar-me para não ver a resposta nos meus olhos.
- Obrigada - não comi. Em vez disso, fiquei a observá-lo. Estava embriagado.
- Tu sabes... sabes que és única! Entendes-me, naquelas situações.
            Ia ser uma longa noite.
- Estás bêbado.
- Não! Há nitidez naquilo que digo, entendes-me?
- Sim.
            Fatia de pizza na mão. Boca repleta de migalhas.
- Vamos para a cama.
Que maneira crua de dizer a alguém que a quer amar.
- Não estás bem.
            Não era uma pergunta.
- Estou ótimo.
            Não era uma resposta.
Vou-me embora.
"Por favor. Fica."
            Quem nunca ouviu um apelo doloroso da alma, nunca saberá porque é que fica parado no mesmo sítio, quando o que realmente quer é ir embora.
Aviso número três.

            Fiquei.