quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Nostalgias

Mais uma vez debaixo das gotículas em ebulição de um chuveiro demasiado estreito para todas as reflexões, conversas entre mim e eu, Lua Nova e Nuvem Negra.
E quem dera que, em vez de todo o calor desprezível e viscoso, pudesse estar lá fora, baixo chuva, de forma a contar cada gotícula gelada em contacto com o meu corpo, de olhos fechados e lábios presos entre dentes.
Mas, enfim, rodopia à minha volta todo o tipo de castelos no ar, feitos do vapor que se escapa mesmo do centro do meu peito. A cabeça deita fumo,

os pulmões absorvem-no. 
                                                   rodeados por insaciáveis demónios de bruma
os meus
                                         eles todos. E eu, que sou a pior deles.
"A estagnação não é nada saudável. Mas também não podes deixar acumular demais."


Palavras que acabam por soar como algo estranhamente familiar, que ainda não tinha ouvido. Quão interessante é adivinhar o Gato Príncipe por detrás do rosto feito de palavras no ecrã.

Obrigada por rodopiares por aí.
Por certo sabes, porque sabe-se lá como pareces saber sempre, mas é bastante cansativo ser uma linha paralela. Sem cruzar mais nenhuma, 
                  sem sequer saber
onde estou
para onde vou.... se está alguém em algum local.

É quase tão bom  pensar que é mesmo uma espécie de magia que funciona melhor do que o que me ensinam que é lógico. Já faz anos em que não pensava assim. Sabes uma coisa?

É a isso que me agarro. A isso e, quer-me parecer, a tudo o que dissipe a nuvem fervente de pensamentos de lava líquida e avermelhada que escorrem por baixo do som sibilante do chuveiro.

Vou mergulhar um pouquinho numa nostalgia já perdida há bastante tempo, que recuperei hoje... Parece-me que as coisas se constroem de novo, muito devagarinho.
Será que os castelos de areia não se destroem sempre?

Se me disseres que é verdade... Acho que talvez tente acreditar.

Obrigada. 

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Perdi-me

O tique-tac incomodativo das solas dos sapatos, em perseguição da tua sombra de contornos indistintos nas pedras da rua, feitas do esterco dos dias e do brilho cor de cegueira branca do sol.
Durante muito tempo, calo-me. Considero que as palavras só chegam até certo ponto. Depois, é preciso ver com olhos de quem conhece, falar com os gestos de quem ama.
Depois, é preciso coragem para morder os lábios, para arrancar as peles dos dedos, para enervar as mãos que estão pousadas no colo, sem se falarem.


Para tirar um lenço da carteira.

Em que sentido, pergunto-me, caminhas? É de trás para a frente, ou de lado, como os caranguejos? E porque não posso eu ir pelo mato, correr por entre espigas de trigo, afastar com cuidado os espinhos das rosas no caminho? Porque não posso eu contornar silvas e levar-te comigo?

Algum motivo em especial pelo qual repetes sem cessar, como papagaio sem penas, de bico mortalmente afiado, esses vocábulos que te foram ensinados sabe-se lá por que tempo corrupto que não nos leva a lado nenhum?
Não sei que queres que te diga.

Dá-me uma lista. Diz-me o que queres que faça.

"Não quero que mudes. Mas...". Então e agora? Sento-me como boneca de porcelana e espero aqui, sem conforto, que descubras que as coisas não funcionam como queremos, e que o caos de sempre não é para ti?
E, secretamente, dá-me gosto ser boneco de madeira - porcelana não, os meus olhos não param, o meu coração ainda bate, embora pouco audível - para que me manuseies de vez em quando, quando eu própria não posso comigo, quando descoso uma costura já rota por outro tique e um tac... Esse do relógio.

Mas, bem cá dentro, entendo perfeitamente que não sei ser assim durante muito tempo. E, ainda mais lá no fundo, há claramente a distinção de que segrego podridão nas minhas falas. Que o meu tom de voz é lâmina afiada, do género daquelas que me acariciam em sonhos com suores frios de uma aurora longínqua e já ao virar da esquina.

Perdi-me.
Ao procurar por ti.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sonhos Vermelhos

Corpo coberto de nódoas negras, desenhadas por entre tinta da china e lápis de cera, cada qual com o melhor tom de preto, verde amarelado cor de vómito, rosada cor de pele quase sarada.
Escorrem veios de tinta negra avermelhada, também denominada corrente sanguínea.

Esquisito como a dor, às vezes, é tão boa.


Respiração aliviada, de quem pensava sufocar na hemorragia cerebral de um acumular de sentimentos, de uma distância a tudo e a todos que parecem pairar apenas nas ruas aqui ao pé de casa.
Casa?
Como saber se é realmente aqui que estou?

De cabeça perdida no firmamento, com estrelas de sangue a reluzir por detrás das pálpebras de um olhar cansado, transmissor daquela doença tão frequente de não saber de que época somos, e se existimos mesmo.


A comida retém o sabor - aquele que sempre teve - e a água mantém-se inodora...
Só o sangue que corre exprime existência, afirma vida... Ou talvez não, sabe-se lá...

Provo-o, sugando de mim o meu néctar das profundezas, vindo de todo o eu, que corre com um certo descontrolo por todos os órgãos, mágoas de mim.

Ora, textura líquida e férreo sabor, como chocolate perverso da noite.

A garganta reclama, não sei se de fome se de inocência de não saber o que lhe dou a provar.

Canibalizo-me. Engulo pedaços do eu, que regurgito de novo e que voltam à superfície.
As pupilas dilatam, nervosas, pequenos faróis de um mundo impenetrável que é o meu.

Cabeça

                              cada qual tem a sua
em cada sítio distinto. 

Maravilhoso mundo, com o qual sonho noites
                                                                                dias
sem fim.

Acorda.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Coração

Tudo começa com o pulsar de um coração. Tudo começa, aliás, com a força da manivela que dá corda ao coração, que bombeia por vasos mirrados sangue fresco, envelhecido como quem o suporta dentro do corpo, sempre em constante mudança irreal, sofrendo transformação atrás de transformação só para se refazer
qual a dor que deve sentir
ao explodir para se transformar, só porque
sim.

"Nem sequer valeu a pena"
Alfinete de cabeça curta, que se insere por debaixo das cicatrizes de pele mal sarada.

"Parece que só piorou", como poderia, se sem dares à corda o coração não anda?
Lembra-te, tudo começa com ele, a bombear cada vez mais lentamente o sangue escuro e podre por entre os caminhos do corpo. Tudo arrefece.


"Agora estás a dizer que a culpa é minha?"

dos dedos escorre sangue negro, às golfadas. É impossível respirar.

"Nem sequer valeu a pena", o batimento interrompe-se aos soluços, por entres respiração ofegante de um órgão fugitivo, preso por entre costelas.
Quer dera que explodisse, para que pudesses saber o quão ferido está neste momento.

Não valer a pena é sujo. Não valer a pena é negro, buraco fundo, túnel sem luz, corredor assustador de onde nunca se sai. Rodopio de tempo entre os dedos e o sangue do corpo.


Engraçado. Não valer a pena parece-se muito com o ser. Pelo menos com a maneira com se é.
Para quê bombear o que está condenado a definhar sem ar, luz,

sangue
vísceras
entranhas
............... pequeno corpo desmembrado.
Ele (o coração, sabes?) morre um pouco mais lá dentro da sua jaula de costelas. Esqueleto branco. Sangue vermelho.
Alma negra como o céu.

Tudo acaba com um coração.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Desilusões primordiais

Debaixo do calor abrasador das gotículas de água do chuveiro, correm pedaços dela, ralo adentro.
Cabelo nos olhos, respiração suspensa, cabeça num torvelinho de pensamentos desconexos... mãos caídas ao lado do corpo, como num derradeiro gesto de derrota.
Confirma-se o que há muito tempo previa. Dos seus dedos, não sai magia. O seu coração nada mais é do que um órgão, do seu sangue não fluem palavras como tinta negra e espessa, cruzando-se com as paisagens dos seus sonhos.

Mãos... de nada servem se não para aquilo para que foram criadas.

Soluços abalam o calmo e tépido banho da noite, espasmos frios de mente insana, a implorar pelas palavras que lhe faltam.

Imagens de correntes pintalgadas de vermelho e branco entre as lágrimas na banheira. Mente vazia, de todos aqueles sonhos que se escondem nos cantos poeirentos da alma.

De que serve ser escritor se já não se escreve? De que serve ser escritor, coração de pena, alma de tinta, dedos de papiro; se não se capturam as frases enlouquecidas das personagens que sussurram aos ouvidos, e que fogem com risos de escárnio?

Retórica. Não serve de nada.
Escritor que não escreve, não pode passar pela vida sem a pôr em papel. Bênção ou maldição, quem escolhe?
Bênção... sim... mais paixão do que outra coisa. Daquelas loucas que nos amarram à cadeira.

A um autor, não basta estar vivo porque sim.
Viver é escrever, escrever é viver.
Por isso, autor que não escreve é como pedra congelada, que perdeu todo o brilho precioso.

Autor que não escreve, são olhos vazios de louco, preso num mundo que não é capaz de explicar.

Autor que não escreve, não vive.

Sempre no vazio... Perdida na escuridão.
Levanta os olhos postos no chão frio e branco, que cega todos os impuros;
... envolta nas maciças teias emaranhadas dela própria.
Olhos inchados, veias a pulsar, cada vez com menos força.
Desilusões primordiais. 

Autora que não escreve...


Não está viva.