domingo, 23 de fevereiro de 2014

Perdi-me

O tique-tac incomodativo das solas dos sapatos, em perseguição da tua sombra de contornos indistintos nas pedras da rua, feitas do esterco dos dias e do brilho cor de cegueira branca do sol.
Durante muito tempo, calo-me. Considero que as palavras só chegam até certo ponto. Depois, é preciso ver com olhos de quem conhece, falar com os gestos de quem ama.
Depois, é preciso coragem para morder os lábios, para arrancar as peles dos dedos, para enervar as mãos que estão pousadas no colo, sem se falarem.


Para tirar um lenço da carteira.

Em que sentido, pergunto-me, caminhas? É de trás para a frente, ou de lado, como os caranguejos? E porque não posso eu ir pelo mato, correr por entre espigas de trigo, afastar com cuidado os espinhos das rosas no caminho? Porque não posso eu contornar silvas e levar-te comigo?

Algum motivo em especial pelo qual repetes sem cessar, como papagaio sem penas, de bico mortalmente afiado, esses vocábulos que te foram ensinados sabe-se lá por que tempo corrupto que não nos leva a lado nenhum?
Não sei que queres que te diga.

Dá-me uma lista. Diz-me o que queres que faça.

"Não quero que mudes. Mas...". Então e agora? Sento-me como boneca de porcelana e espero aqui, sem conforto, que descubras que as coisas não funcionam como queremos, e que o caos de sempre não é para ti?
E, secretamente, dá-me gosto ser boneco de madeira - porcelana não, os meus olhos não param, o meu coração ainda bate, embora pouco audível - para que me manuseies de vez em quando, quando eu própria não posso comigo, quando descoso uma costura já rota por outro tique e um tac... Esse do relógio.

Mas, bem cá dentro, entendo perfeitamente que não sei ser assim durante muito tempo. E, ainda mais lá no fundo, há claramente a distinção de que segrego podridão nas minhas falas. Que o meu tom de voz é lâmina afiada, do género daquelas que me acariciam em sonhos com suores frios de uma aurora longínqua e já ao virar da esquina.

Perdi-me.
Ao procurar por ti.

2 comentários:

  1. As músicas que metes aqui condizem tão bem com os teus textos :)) Um beijinho*

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  2. querida catarina, que texto tão extraordinariamente belo, que coro de sentimentos tão dolorosos dele brotando. é isto, o amor? flores secas por entre um jardim primaveril? mas sei que no amor, nunca poderá haver uma única sombra. a ti -a ti - não te não deixes para trás. um beijinho cheio de carinho.

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