quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Desilusões primordiais

Debaixo do calor abrasador das gotículas de água do chuveiro, correm pedaços dela, ralo adentro.
Cabelo nos olhos, respiração suspensa, cabeça num torvelinho de pensamentos desconexos... mãos caídas ao lado do corpo, como num derradeiro gesto de derrota.
Confirma-se o que há muito tempo previa. Dos seus dedos, não sai magia. O seu coração nada mais é do que um órgão, do seu sangue não fluem palavras como tinta negra e espessa, cruzando-se com as paisagens dos seus sonhos.

Mãos... de nada servem se não para aquilo para que foram criadas.

Soluços abalam o calmo e tépido banho da noite, espasmos frios de mente insana, a implorar pelas palavras que lhe faltam.

Imagens de correntes pintalgadas de vermelho e branco entre as lágrimas na banheira. Mente vazia, de todos aqueles sonhos que se escondem nos cantos poeirentos da alma.

De que serve ser escritor se já não se escreve? De que serve ser escritor, coração de pena, alma de tinta, dedos de papiro; se não se capturam as frases enlouquecidas das personagens que sussurram aos ouvidos, e que fogem com risos de escárnio?

Retórica. Não serve de nada.
Escritor que não escreve, não pode passar pela vida sem a pôr em papel. Bênção ou maldição, quem escolhe?
Bênção... sim... mais paixão do que outra coisa. Daquelas loucas que nos amarram à cadeira.

A um autor, não basta estar vivo porque sim.
Viver é escrever, escrever é viver.
Por isso, autor que não escreve é como pedra congelada, que perdeu todo o brilho precioso.

Autor que não escreve, são olhos vazios de louco, preso num mundo que não é capaz de explicar.

Autor que não escreve, não vive.

Sempre no vazio... Perdida na escuridão.
Levanta os olhos postos no chão frio e branco, que cega todos os impuros;
... envolta nas maciças teias emaranhadas dela própria.
Olhos inchados, veias a pulsar, cada vez com menos força.
Desilusões primordiais. 

Autora que não escreve...


Não está viva.    

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