quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Rascunhos


Por vezes, até os de duas pernas marcam território pelas esquinas do centro da cidade, onde há vida muito depois da uma da manhã.
            De cigarro preso entre os dedos, contemplar a fauna através do nevoeiro à frente dos meus olhos.
            Nada disto era novo, nada disto me proporcionava mais do que o fugaz deleite de observar carros a parar nas luzes vermelhas de um semáforo, soltando roncos de amante satisfeito, no silêncio.
            Homens na noite, cambaleando de volta a casa, para o abraço amargo do sofá. Mulheres "alegres", de sorriso amarelado pela comida que não escovaram bem dos dentes. Miúdas, talvez da minha idade, a gemerem presas na ponta da língua de um rapaz, cujas mãos tremem de antecipação.
            Gostava de recordar tudo isto antes de adormecer, revivendo por detrás das pálpebras a vida que há no mundo, no qual sou apenas turista. O único prazer das apressadas saídas da casa dele, era simplesmente observar aqueles que viviam.
E perguntar-me se me viam, criatura invisível de sapatos de cordão nas mãos, de maquilhagem borratada e de marcas de dentes no pescoço.
            A vida da cidade escapava-me por entre os dedos. No meu cérebro adormecido de mulher-criança, tudo se começava a confundir.
            Enrolei-me, mãos presas na almofada, dormindo em cima do material acolchoado de que são feitos os sonhos.

1 comentário:

  1. Palavras encaixadas assim são como um puzzle sem recortes onde tudo se encaixa na perfeição da escrita.
    Parabéns Catarina por seres uma mulher criança que se ergue do anonimato para nos dares a conhecer o teu talento sobre a forma da palavra.

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